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Studies on Portuguese Ceramic. Action nº1, 2007

Performance to video made in an abandoned ceramic factory in Caldas da Rainha, Portugal

Cerâmica: entre o artesanato e o artístico através do feminismo

 

A construção da História da Arte ocidental, subjectiva e sujeita a mecanismos de assimilação e homogeneização, deixou de fora muita (ou quase toda a) presença feminina e reduziu muitas áreas artísticas a meras actividades decorativas, “hobbies”, colocando-as, muitas vezes de forma depreciativa, na categoria de artesanato. A cerâmica foi uma das expressões artísticas mais afectadas: tendo sido, desde o início da humanidade, uma das mais importantes técnicas artísticas e artesanais, viu-se reduzida apenas a esta última (se tivermos exclusivamente em conta o cânone da arte). Dada a estreita relação da cerâmica com a produção de objectos de uso diário e doméstico, e sendo esta uma área em muitas mulheres se destacaram em termos criativos e técnicos, foi não só categorizada como “feminina” mas também paralela e consequentemente como arte “menor”.

O aparecimento de movimentos feministas foi transversal a muitas áreas profissionais e pessoais, e teve grandes ecos na criação artística. A reclamação dos estereótipos ligados à domesticidade e à feminilidade como problema social maior e logo matéria artística de relevo apoiou um reconhecimento justo das artes ditas menores, que lentamente começam a ocupar o espaço que anteriormente esteve reservado apenas para as “belas-artes”. No caso português, a cerâmica tanto surge como símbolo duma “portugalidade” artesanal e propulsiona uma série de re-interpretações de tradições, agora renovadas e inovadas — e assim a cerâmica voltou a ser cool (e já todos os turistas podem comprar Santos Antónios e sardinhas de cerâmica nas inúmeras lojas que nascem na Baixa lisboeta); como em trabalhos artísticos reconhecidos enquanto tal. 

Ainda assim, o impacto da associação da cerâmica ao kitsch renegado, a rejeição do tradicional e os efeitos (colaterais e directos) da crise económica em todos os sectores de produção em Portugal, são visíveis no desaparecimento de diversas fábricas e empresas de produção de cerâmica. Foi numa destas fábricas, fechadas e inutilizadas, que Rita GT ocupou o espaço de manufactura cerâmica, onde se produziam as popularmente chamadas “loiças” (reforçando aqui a conotação doméstica e utilitária da palavra), subindo com esforço para cima de uma pilha de restos abandonados. Após conquistar o topo e se tornar visível, torna-se também audível, ao atirar pratos e cacos pelo monte abaixo. Este momento afirmativo e de cisão com o que seria o seu “papel”- o da mulher que lava a loiça, que realiza as tarefas de forma mecânica, organizada, sem se queixar ou delegar - poderia tornar-se violento não fosse tão visível a descontração com que GT realiza esta tarefa também mecânica, quase simétrica e ao mesmo tempo totalmente oposta à lavagem da loiça suja.

 

O trabalho doméstico: donas-de-casa / mulheres-a-dias

 

A ligação da cerâmica com o feminino (e o feminismo) não se dá apenas na produção oficinal e artesanal ou na criação artística, mas também através da sua utilização quotidiana. Transporte, contenção de líquidos ou sólidos, recipientes, adornos, utensílios,… - um sentido utilitário sempre ligado ao que hoje se chama o “doméstico”, a todo esse trabalho invisível que sempre foi cumprido e assegurado quase exclusivamente por mulheres. 

A desigualdade e assimetria de género é especialmente visível na distribuição das tarefas domésticas, sendo que “nos dias de semana, as mulheres gastam uma média de 4 horas e 23 minutos a realizar trabalho não pago [tarefas domésticas], ou seja, 1 hora e 45 minutos a mais que os homens. A tendência é reforçada durante os fins-de-semana”. Em média, a diferença entre o tempo gasto com tarefas domésticas semanalmente por homens e por mulheres é de 12 horas e 22 minutos.

Em “The use of time by men and women in Portugal” é também referenciada essa figura não-histórica (pelo repetido rasuramento e invisibilização, não por ser uma criação recente) que é a “empregada doméstica” - leia-se “mulher-a-dias”, “senhora da limpeza”, entre outras expressões coloquiais e sexistas utilizadas para denominar a pessoa que realiza as tarefas domésticas na casa de outros, um lugar de trabalho ocupado em 80% por mulheres.  As autoras afirmam que efectivamente a contratação de uma pessoa para realizar os serviços domésticos pode criar uma situação de maior equilíbrio em relação à distribuição das tarefas, mas reforçam repetidamente que isso não resolve as questões de género e de repensar as noções sociais do mesmo, apenas eliminam a necessidade e urgência da mudança deste comportamento associado ao masculino: “Ruth Lister (…) afirma que ‘comprar o tempo de outra mulher’ (mulheres mais pobres e muitas vezes imigrantes), em vez de idealizar a divisão sexual do trabalho doméstico, acaba por reforçar o comportamento masculino”

Trazendo a público o privado, Rita GT equipa-se com o seu fato-macaco, identificada como “mulher-a-dias”, e carrega toda a loiça suja deixada para “alguém” lavar. Olhando directamente para a câmara, enfrentando o observador passivo, elimina a invisibilidade do seu lugar pelo confronto directo. Esta fotografia faz parte de uma série de 9, intitulada “Mulher-a-Dias”, uma série desenvolvida durante a residência de Rita GT na Golborne Street, Londres, uma rua onde habita uma grande comunidade portuguesa, que fugiu para Inglaterra na altura do Estado Novo e da Guerra Colonial - e foi posteriormente apresentada na exposição “Escola ao Lado / School Next Door” na Galeria 50 Golborne (Março 2018). É um trabalho incisivo e importante no contexto da migração que marcou esta época: pouco ou nada literadas, as mulheres que se mudaram para Londres (e para outros locais) estavam limitadas nas suas possibilidades profissionais, tornando-se empregadas de limpeza em hotéis ou em casas da classe média e alta, invisíveis e invisibilizadas no seu trabalho e na sua condição humana. Tal como a cerâmica era uma “arte menor”, também estas mulheres realizavam os “trabalhos menores”.

 

 Extremamente coerente e consistente, a obra de Rita GT nunca se esgota em si mesma, tal como os assuntos que trata não se esgotam, nem cai na tentação da repetição mesmo quando a eles regressa, pois este regresso faz-se pela constante renovação tanto estética como do modo de enfrentar e responder a problemas que também eles se vão actualizando e repetindo. 

 1 “Como foi apontado por arqueólogas feministas, houve uma tendência na arqueologia pré-1990 de associar as mulheres com ofícios de estatuto mais baixo. As diferenças de estatuto dos ofícios são baseadas em categorias modernas nas quais as tecnologias são classificadas hierarquicamente, e a várias artes e ofícios ou técnicas de produção é atribuído um valor superior ou inferior. Estas categorias ou hierarquias são então impostas em sociedades passadas.” Rita P. Wright, em “Women and Ceramics: Gendered Vessels (review)”

2  PERISTA, Heloísa, CARDOSO, Ana, BRÁZIA, Ana, ABRANTES, Manuel, PERISTA, Pedro, “The use of time by men and women in Portugal”, CESIS / CITE, Lisboa, 2016 (p.162)

3 Segundo o estudo do Parlamento Europeu, disponível em http://www.europarl.europa.eu/thinktank/en/document.html?reference=EPRS_BRI(2015)573874

4 ibidem

5  “The use of time by men and women in Portugal” (p. 58)

Marta Espiridião 2019

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